Vampire’s Kiss

Por que gostamos de um filme?

O que nos faz considerar um filme como sendo “bom” ou “mau”?

Como se sabe, não sabemos.

Podemos ter critérios, claro. Não há ninguém que nos impeça de estabelecer paredes imaginárias que vedem o acesso de determinadas características ao lugar dos bons filmes. Por exemplo, todos conhecemos quem não goste de filmes de ficção, ou fantasia, pois consideram difícil acreditarem-se em algo que sabem que é impossível ou não existe. Ou, mais frequente, decidimos impor-nos a nós mesmos a norma que diz que um bom filme não poderá ter inconsistências, tanto a nível de personagem como a nível da história em si. Mas depois fechamos os olhos quando nos dizem que se ninguém estava na sala quando Charles Foster Kane disse ‘Rosebud’, portanto ninguém poderia saber que isso foi a sua última palavra (estando nós próprios  a cometer, ironicamente, uma inconsistência de personagem).

Isto tudo, voltando a onde queria chegar, para dizer que embora possuamos tendências, não temos realmente maneira de definir o que nós próprios consideramos um bom filme. E ficamos com aqueles casos de filmes globalmente considerados de bons, aqueles filmes considerados unanimemente como maus, e até aquela doce categoria dos filmes “tão maus que são bons”. E depois…e depois há este filme;

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Vampire’s Kiss é um pesadelo psico-erótico desajeitadamente realizado por Robert Bierman em 1989, acerca da queda da sanidade mental de um yuppie nova iorquino. Peter Lowe é um agente literário aparentemente bem sucedido, mas sem qualquer tipo de interacções humanas – descontando a sua psiquiatra, a sua secretária e as mulheres com que vai tendo relacionamentos ocasionais e descartáveis. Um dia, uma das suas one night stands revela uns dentes caninos peculiarmente protuberantes e morde-o no pescoço, para gáudio sexual de Peter.

Desde aí, Peter começa a acreditar que se está a transformar num vampiro, agindo de forma cada vez menos normal. No processo, aterroriza crescentemente a sua secretária, chegando, no fim do filme, a transformar-se num grotesco vagabundo narcisista fengofóbico homicida.

É discutido se este filme é intencionalmente humor negro, e se Peter Lowe estaria realmente a transformar-se num vampiro. Na realidade, o próprio realizador já admitiu que também não sabe. Mas claro que nada disto interessa. Provavelmente, o leitor já reparou num pormenor que ainda não foquei. A única coisa que realmente interessa no filme: Nicolas Cage.

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Este filme é Nicolas Cage destilado. Sem ele, seria um pretensioso filme desinteressante condenado ao esquecimento. Completamente fora de sincronia com o resto do tom do filme, Nicolas Cage imprime vida a esta, chamemos-lhe, ‘arte performativa’, com um overacting esplendoroso, crescentemente bizarro, por vezes risível, outras vezes até constrangedor, aliado a uma aparente falta de noção de como os humanos funcionam.

Com um intermitente sotaque e ostentando um penteado ridículo (mesmo pelos padrões de Cage), Nic Cage dá-nos de tudo: afugenta um morcego, contempla uma meia, recita o alfabeto a imitar o Mic Jagger, come uma barata (sendo o sério e empenhado actor de método que é, comeu mesmo, não uma, mas três baratas), imita Max Schreck (e já tinha feito uma não intencional imitação do Keanu Reaves), corre pelas ruas de Nova Iorque a gritar “I’m a Vampire! I’m a Vampire!”, salta para cima de mesas, segue a sua secretária até casa e bate-lhe à janela para oferecer um pacote de sopa em pó, persegue uma pomba, comete homicídio, e fala com uma parede durante uns bons 15 minutos. E nem sequer enumerei tudo.

No fim do filme, ficamos sem perceber se o realizador tinha pouca mão sobre os limites que podia impor sobre o famoso coleccionador de fósseis (sim, Nic Cage colecciona fósseis), ou se simplesmente, o acesso à cocaína no set do filme  era ridiculamente fácil (digo isto sem um pingo de sarcasmo).

Vampire's Kiss

Sim, tal como a própria actuação de Cage, se analisarmos o filme, podemos colocar-lhe defeitos válidos e desvalorizá-lo. Mas a verdade é que, ainda que passemos todo o filme a rir-nos das maluquices de Cage, o homem entretém e mete-nos genuinamente interessados em saber o que é que ele vai fazer a seguir. E pelo final, Cage (ou o filme) consegue meter-nos incomodados – o que, afinal de contas, é o objectivo. Embora a peculiaridade de Nic Cage, seja – sejamos francos – ridícula, e o enredo seja confuso e quase inexistente, a verdade é que quem vir este filme dificilmente se esquecerá deVampire’s Kiss.

Por tudo isso, tenho que admitir que não consigo discernir genuinamente se considero este filme bom ou mau (embora tenha a certeza de que não é um filme mediano). Mas sei que é um filme único, com todo o mérito para tal. E por muitos defeitos que se possa colocar, é uma experiência própria. Por isso só me resta dizer, caso algum dia tenha essa a oportunidade, “Thank you, Mr. Cage”.

Ide ver!

A título de curiosidade:

  • O realizador não sabe o porquê do sotaque de Nic Cage;
  • Nic Cage fechou-se no quarto de hotel com o seu gato e destruiu o quarto todo em preparação para este filme;
  • Por vezes, aparecem mimos em plano secundário. O realizador não sabe porquê;
  • Nic Cage usou o dinheiro que fez neste filme para comprar um Corvette Sting Ray de 1967;
  • Para além de ter comido as baratas, Nic Cage insistiu para que fosse mordido por um morcego para se preparar melhor para o papel. Felizmente, conseguiram persuadi-lo a desistir da ideia;
  • Um famoso meme com a cara de Nic Cage e a legenda “You don’t say?” (link) foi retirado do filme (embora não seja, de todo, isso que ele diz);
  • Os figurantes são pessoas na rua que não sabiam que se estava a fazer um filme;
  • Pelos vistos Nic Cage mandou uma cópia do filme a Roman Polanski. Nunca obteve resposta.

Como bónus, eis um vídeo de cenas seleccionadas. Mas desenganem-se se acham que a visualização deste vídeo substitui um visionamento do filme; o vídeo não faz de modo algum justiça a este Magnum Opus de Cage.

 

Link para o artigo original:

Flashback: Vampire’s Kiss

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